domingo, 21 de setembro de 2014

Asa sem par


Adaptação de imagem disponível neste link.



          Estou enterrando uma pessoa especial. Sim, eu tinha uma, apesar de detestar o termo. O que é especial tende a ficar guardado. Sempre quis coisas e pessoas comuns, para o dia a dia, para toda hora, sem esperar por ocasião. Mesmo assim, cultivei uma especialidade. Rara. Em tudo. Na beleza, no sentimento, na possibilidade de estar junto.

Não havia como ser diferente. Até o resplendor mais viçoso se perde, quando abafado. Com a distância constante, o sopro vital foi se extinguindo.

Estou enterrando essa pessoa especial. De modo lento, doloroso, nos intervalos de sol e chuva. Esmero-me em cumprir todos os ritos de que o luto necessita. Vão as velas do velório. Vão as velas dos olhos. Tudo que é luz e brilho aos poucos submerge nas águas da despedida.

Desvencilhar-se é processo muitas vezes imposto. Já me tiraram tanto, induzindo-me a crer que é preciso que o antigo se vá. O caderno de poesias da infância... As amigas da adolescência... O imponente estofado de estilo clássico... Os discos de vinil... Os sonhos de amor... Aceitei. Aceito as regras. Porém, sofro. O peito dilacera-se sem testemunhas. Pro diabo essa coisa de desapego, viver com o mínimo, trocar de opinião, mudar de ares! Acaso conhece alguém as minhas intensidades?

Entretanto, é imperioso esse desfazer de agora. Dou a volta ao mundo em busca de detalhes sobre as solenidades inventadas para o momento da morte. É para chorar, beber, cobrir o corpo de preto, aprisionar-se, atirar-se na pira fúnebre?

É para fugir de mim mesma. É para enfrentar-me a mim mesma! Virar o jogo, revirar as gavetas, recriar a coreografia. 

Tem que ser assim. Devagar. Tomar a dimensão da cova de longe. Achegar-me. Deitar o olhar para dentro do buraco. Esboçar um gesto técnico, como a verificar a métrica do espaço. Caberá! Debruço-me a lançar terra, punhado por punhado, apertando-a entre os dedos, entre a tristeza, entre a desilusão, para que sumam das mãos todas as linhas, para que a história se perca no nevoado da poeira.

Tu virarás pó. Talvez eu venha a me sentir incomparavelmente só... Talvez o balé se produza mais belo, mais consonante, repaginado em asa sem par.

Já a última mão de terra. Depois é dizer fim. A derradeira, cujo poder é transformar-te para sempre em pó... Mas, justo essa, o braço, exausto de fantasiar tantas danças, não consegue completar.
   
   


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