quinta-feira, 14 de julho de 2011

O caso da doceira



Um dia o irmão adoecera. Os gemidos passaram a ser ouvidos constantemente. As lágrimas da mãe tornaram-se habituais. As visitas da família – enorme! – também viraram rotina.

Se para fugir da aflição que se abatera sobre a casa... Se para sentir-se útil... Se para sentir-se notada...? O caso é que decidira fazer doces e oferecê-los aos parentes que vinham principalmente aos domingos e feriados. Oferecia-os também aos médicos, à solícita enfermeira, ao padre... aos vizinhos.

Aos poucos, foi perdendo a sensibilidade para as flores e seus perfumes. Os olhos severos e impassíveis exigiam apenas os frutos e já os viam macerados, premidos, cozidos. Sabia de olho a quantidade de açúcar a deitar sobre eles. O tempo de fogo. O doce no ponto. E, quando os gemidos e as lágrimas aumentavam, tanto mais o vigor da colher de pau. Só a massa desprendendo-se do fundo do tacho de cobre caramelava-lhe a vida.

Cuidava dos tachos como se fosse a si própria. Provavelmente até com mais afeto. Nada de azinhavre. Os tachos foram delimitando seu espaço na casa. A fama de doceira foi delimitando seu espaço na família, no mundo.

Em uma tarde de muitas jabuticabas a colher, a agonia do irmão de repente crescera. O padre veio às pressas.

Ouviu-se, momentos mais tarde, um último som lancinante. Um tio correu a tomar as providências. Os olhos da moça-doceira transformados em fios de calda de açúcar, numa cachoeira sem fim. A mãe fitou-a desconsoladamente. Caminhou até ela. Tomou-lhe das mãos a colher de pau e dirigiu-se ao tacho sobre o fogão.

Se para fugir do desatino... Se pelo domínio febril... Se por hábito de dor...? O caso é que a mãe – e ninguém mais – continuou a fazer doces naquela casa.
 

domingo, 3 de julho de 2011

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Tu questionas o meu silêncio. Não compreendes meu ritual de contemplação. Não vês que, quando adormeço em teus braços, a noite atravessa meu corpo. Soturna, ela rouba-me todas as palavras, até as apreendidas de outros idiomas. Depois, já serena, deposita-as uma a uma nos sonhos que, pela manhã, tu esquecerás que sonhaste. Não é a memória que te faz existir. Tu só existes porque me calo.

Eu até poderia fazer-te crer que sempre há tempo para o diálogo. Prefiro, no entanto, mostrar-te que sempre há tempo para o alimento e para o amor. A cozinha é a parte viva da casa. Panelas fumegantes e aromas vários. Eu tempero as emoções, ofereço-as a ti em pratos irrecusáveis. Mais tarde outro aposento torna-se a parte viva da casa. O vinho de apurada degustação... A iguaria ainda mais desejada...

Mas insistes.

É preciso que eu diga algo?

Se assim queres, eu digo. Falo-te de uma eternidade de angústias acumuladas na pele envelhecida. As lágrimas surgem. Inundam os sulcos cavados pelo tempo. Falo tanto! Até que estejam apagadas todas as luzes, as estrelas do céu, as estrelas do meu olhar...

Tu escutas. Vais-te fazendo outro. Lívido! O silêncio agora é teu. Passas a te conhecer em minhas palavras. Tu te afastas. Viras pó ante o vento incrédulo. Transformas-te no homem que és. Deixas de ser o meu amado.

A casa se desfaz. Escombros inertes pelos quatro cantos...