segunda-feira, 18 de abril de 2011

De pano ordinário

    
Homenagem a Monteiro Lobato 

http://pt.scribd.com/doc/7073594/Monteiro-Lobato-Sitio-Do-PicaPau-Amarelo-Vol-1-Reinacoes-de-Narizinho. p.9.


Escrevo. Que é para dar corpo às lendas de um reino de águas claras perdido no labirinto dos pensamentos. Falar somente é, não raro, por demais difícil. Torneirinha travada por forças que incidem de fora para dentro. Não há pílula que destrave.

Há grande vantagem no ato da escrita. O material desses pensamentos vai, pelas letras que se crivam em espaço propício, costurando a mulher que perdeu os olhos de boneca. No fazer e refazer das vestimentas, as agulhas do constante coser brincam de unir a vida real aos espaços antigos da fantasia. Não se enganem, porém: o pano continua ordinário.

Alguns belos vestidos ainda ocupam os armários da lembrança. Havia um na infância primeira, feito todo de retalhos, sobras do que emoldurou as vontades da clientela de minha mãe, xadrezes estreitos, poás e minúsculas estampas de flores, com predomínio da cor laranja. Tinha gosto de sol. Iluminava a pele. Àquela época eu lia as mil e uma noites de Sherazade e as histórias da Carochinha. Nada de Monteiro Lobato.

Depois outro vestido, bem comportado nas manguinhas bufantes e no comprimento pouco acima dos joelhos. Sabe como é, aquela trova – ai, acho que já me esqueci – algo assim “sou pequenina da perna grossa, vestido curto papai não gosta”. Vestido amarelo. A pele ainda mais iluminada! Fazia até os olhos brilharem. No suceder das alvoradas, o exercício da escrita deixou de ser apenas curiosidade, virou processo de conhecimento. Comecei a me saber, em mim e também nos outros. Dentre as tantas novidades, visitava o Sítio do Pica-pau Amarelo às 17 horas de todas as tardes, na mágica em preto e branco do mecanismo de teletransporte.

Houve, depois, um vestido vermelho, de tecido fino e bordado brilhante, para a formatura do grupo escolar, longuete, cuja barra foi, aos poucos, subindo, para acompanhar meu crescimento e alimentar as laterais que, no mesmo compasso, precisavam crescer. Não me lembro se a menina do nariz arrebitado usou algum dia vestido vermelho, mas eu li todo o seu livro e todos os outros de sua gente. Com aquele vestido, embora descalça pela ausência do sapatinho de cristal que nunca perdi, fui princesa durante certo período – o borralho em alguns pares de horas tornava-se invisível .

Fui crescendo. O Sítio se esvaindo dos novos sonhos. Hoje, em um guarda-roupa de recordações somadas aos novos acontecimentos, o colorido das fazendas se modificou. Amei e deixei o país da Gramática. Retornei. Nunca usei o mais belo vestido, feito pela melhor costureira do reino. Os vestidos nunca foram de seda. Continuo feita de pano ordinário. Os fios do meu escrever, entretanto, tenho tentado deixá-los cada vez mais resistentes. Na criação da palavra que lanço ao papel, sou a aranha, que sabe fazer vestidos lindos, lindos até não poder mais! Eu mesma teço a fazenda, eu mesma invento as modas.
 

12 comentários:

  1. Belíssima, e justíssima, homenagem, Márcia.

    Parabéns, crônica tocante!

    Bjs,
    Ricardo.

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  2. Oi amiga, eu fiz uma postagem de um texto dele também. Espero que também goste. Adorei sua homenagem. Abraço com muita ternura. LuGoyaZ.

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  3. finos tecidos habilmente trabalhados no se trocar ao longo do tempo vivido, de tal forma que a sensualidade do despir-se passa discreta - mas não despercebida! -, filtrada pelas cores de cada novo modelo vestido.

    abraço

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  4. Márcia, que delícia de texto: carinhoso, comovente; cristal saído das águas claras do rio do reino; boas lembranças de uma criança... feliz.

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  5. Uma bonita homenagem. Escrever é fazer das palavras um abraço. Gostei muito do texto.
    Um beijo e Boa Páscoa.

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  6. Na arte da escrita, vc é a aranha rainha, que tece vestidos únicos e belos, que todas invejam, mas nenhuma consegue copiar. Bejinhos sabor chocolate ! Feliz páscoa! Rúbia

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  7. Marcia Luz...
    Teu nome já indica a tua sina... luz...poesia, palavras doces... e ternas...
    Uma delícia de blog de poemas e de lirismo.
    Teu lirismo tem um fio condutor impressionante...nascestes poeta e escritora.
    Siga tua sina e tua luz.
    Na verdade, vi teu blog num blog grego, e imediatamete segui-te.
    Tenho dois blogs:
    Um erótico-poético (proibido para menores de 50 anos) e outro poético.
    Espero que não se sintas invadida por um blogueiro com um blog desse nível!
    Mmas meu blog de poemas é muito belo... gosto muito..!!!
    Melhor ainda, vou comentar com a URL de meu blog de poesias e, depois, se você tiver curiosidade, te indico meu blog erótico...
    Felicidades...

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  8. Outra coisa.... aqui na minha cidade (Uberlândia), a Rede Globo está anunciando o Dia do Livro como hoje....
    É errado não?? O Dia do Livro não é o Dia do Monteiro Lobato?? Corrija-me se for ocaso.
    Abraços

    Marco

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  9. Quanto encantamento!!!
    Os vestidos da nossa infância...
    Minha avó fazia muitos para mim e de todos os jeitos e panos e formas...
    Que saudades!!!
    Abraços, menina

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  10. Amigos sempre presentes, amigos sumidos, amigos novos...

    Para vocês, uma frase de Monteiro Lobato:

    "Porque tenho sido tudo, e creio que minha verdadeira vocação é procurar o que valha a pena ser."
    (Carta a Godofredo Rangel, Nova York, 28/11/1928)

    Vocês fazem parte da minha procura.

    Abraços

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  11. Belo texto, justa homenagem! É um prazer enorme conhecer esse canto literário, de um primor de bom gosto e talento! Tudo de bom e muita inspiração!
    Amplexos!
    André Anlub

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