sábado, 17 de abril de 2010

Lembranças de Leitura

    
O mês de abril guarda uma data talvez pouco significativa para os mais novos: o dia 21 de abril. Em meio à algazarra que a sociedade de consumo promove com o coelhinho da páscoa, a figura de Tiradentes, ainda que as guloseimas incitem a um alerta sobre a possibilidade de cáries, passa despercebida. Entretanto, por mais que apagado, o dia me remete a Cecília Meireles, um alvo certeiro da minha paixão pela literatura brasileira. Explico: Cecília é autora de uma das minhas obras prediletas: Romanceiro da Inconfidência.

Não vou me adentrar nos aspectos sobre os quais discorreria um cientista literato ou mesmo um crítico de arte. Vou, pelo contrário, falar de experiências vividas.

Num tempinho que já vai adiantado, coincidentemente, 21 de abril – de 1993 – , os eleitores brasileiros foram convocados a optar, em um plebiscito, pelos regimes monárquico ou republicano e ainda pelas formas de governo presidencialista ou parlamentarista. Havia eu, naquele tempo, me mudado para Belo Horizonte, sem, no entanto, ter realizado a transferência do título eleitoral. Em virtude disso, comprei meu formulário de justificação de ausência e dirigi-me à enorme fila para tal fim que circundava o quarteirão do prédio dos Correios, no Barreiro.

É claro que, em tais circunstâncias, estava sempre prevenida, carregando um livro que tornasse a espera menos dolorosa, ou para os de espírito supercapitalista – que seu Deus os tenha – mais produtiva.

Foi assim que abri meu exemplar do Romanceiro, recém-comprado, cumprindo a promessa de que, quando a situação financeira permitisse, realizaria o sonho de montar minha biblioteca pessoal. Esse livro já estava escalado para fazer parte dela. Estava atrás de mim um casal de namorados e o rapaz entremeava à conversa com a namorada uma larga olhadela à minha página. De uma forma quase automática, passamos a uma leitura coletiva, embora silenciosa, marcada apenas pelo sinal de que a página já podia ser virada.

Caminhamos, no moroso passo da fila, embalados pelas redondilhas árcade-modernas de Cecília. “Doces invenções da Arcádia!” Rapaz privilegiado: dividiu horas que poderiam ter sido extremamente tediosas com três magníficas mulheres! E assim participei (!), com uma alegria ímpar, da decisão por um governo republicano-presidencialista.


(Texto já publicado em mídia impressa)
    

2 comentários:

  1. Hábito maravilho este de carregar um livro em 'horas tediosas' - principalmente os bons autores como a Cecília.

    Creio que a morosidade da fila na justificativa do voto neste plebiscito fora brilhantemente colocada por você no texto para demonstrar a "aparência" desta nossa república - embora não tenhamos garantia de nada diferente numa eventual monarquia, muito menos naquela antiga do tempo do Império.

    Texto maravilhoso; aliás, novamente maravilhoso. Escreves de forma incomum, pois alia um estilo refinado à leveza da reflexão. Obrigado por proporcionar satisfação a um leitor humilde.

    :-)

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  2. Adorei !!! Um livro carrega muito mais histórias do que a escrita dentro dele...

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